Friday, October 10, 2008

A “FLOR AGRESTE” E OUTRAS HISTÓRIAS DE UMA CASA ABANDONADA

salvadorpereirasantos@hotmail.com

Sempre que passo na rua Luís de Camões não consigo evitar que os meus olhos se fixem na grande janela que fica por cima da porta principal da Casa-Atelier de Soares dos Reis. Há dias, quedei-me a recordar a menina Branca, filha dos donos de uma antiga carvoaria vizinha, que, em criança, olhava deslumbrada aquela estranha janela. Ela sabia que ali vivia um artista, um professor, mas nunca o conseguia ver. A janela estava sempre fechada e as portas quase nunca se abriam. De vez em quando, via sair pela porta pequena uma senhora com um carrinho de bebé. Mas o professor, ela nunca o via. Até que um dia ele se desvendou. Aproximou-se dela e perguntou-lhe: «Queres que eu faça a tua cara em barro?» A menina de rosto tão fresco, tão gentil, tão puro como uma flor agreste, sorriu. A mãe concordou e… dias depois, nascia a Flor Agreste.

A menina Branca está imortalizada numa escultura que nasceu em barro e passou depois para um mármore italiano tão branco como o rosto e a alma da filha dos carvoeiros. A Flor Agreste é hoje considerada uma das obras maiores do escultor e uma das peças mais importantes da escultura europeia. Foi naquela casa de janela grande, por onde se espreitavam os sonhos escondidos nas estrelas e nas nuvens que invadiam os céus, que Soares dos Reis moldou com as suas inspiradas mãos o rosto, os olhos, a boca, o cabelo e a roupa da “menina-flor”, como lhe chamou o Mestre-Escultor. Hoje, a grande janela da sua casa mantém-se sempre fechada e as portas nunca se abrem. Mesmo que outra menina, como a Branca da carvoaria, fique à espera que o mistério se desvende, nada acontece. A porta fechou-se para todos. E lá dentro mora o abandono e a degradação.

Das pessoas que passam, ou mesmo das que moram junto ao edifício, poucas saberão que Soares dos Reis ali viveu, trabalhou e morreu. Nem uma lápide, uma simples placa, assinala esse facto. O ano passado, na passagem dos 160 anos do nascimento do escultor, o vereador da Cultura de Gaia anunciou o regresso do imóvel à gestão do Município, prometendo para breve a consumação desse desiderato através da celebração de um protocolo com a Universidade do Porto. Formalizado o acordo – disse o vereador – seria então possível avançar com a recuperação da casa e com a sua reabilitação para fins culturais. A verdade é que nada aconteceu até hoje. E ninguém da autarquia explica o que se passa. Mas que mistério se esconde neste denso manto de silêncio? Será que a resposta a esta pergunta está numa missiva que recebi na minha caixa de correio?

Eis o que o mensageiro me diz: «(…) É com grande pena que lhe comunico que, quanto ao futuro da casa oficina de Soares dos Reis, o que se avizinha não é nada bom. Houve de facto um protocolo que foi assinado pela Câmara de Gaia e a Faculdade de Belas Artes do Porto. A ideia era a Câmara recuperar o espaço e a Faculdade "animá-lo". Entretanto ficou-se a saber que a casa pertence ao Ministério das Finanças e que este não tem interesse em dar-lhe qualquer uso, mas sim vendê-la. Acho que não é preciso dizer mais nada... Entretanto parte do telhado que faz parte da zona onde o artista tinha o atelier já ruiu... e nem lhe conto "os assassinatos" que já foram feitos à estrutura do edifício... de partir o coração. Tendo em conta o poder do seu proprietário não sei o que se possa fazer para reverter esta situação... (…)».

Quem assina aquelas palavras pode parecer resignado, mas não. Pelo contrário, promete bater a todas as portas até que o problema se resolva. Não descansará enquanto não conseguir que alguém se interesse pela infeliz situação em que se encontra a Casa de Soares dos Reis, embora lhe pareça que muitas vezes está a falar com “moucos”. E os “surdos” são os que têm maiores responsabilidades pelo estado a que chegou o edifício da grande janela que deslumbrava a menina Branca da carvoaria. O meu correspondente não ficará só nesta sua empresa. Não podemos calar a nossa revolta! Não podemos deixar que o edifício sucumba perante tanta incúria e insensibilidade. Na próxima terça-feira, dia 14 de Outubro, passam 161 anos sobre o nascimento de Soares dos Reis. Proponho que, nesse dia, deixemos à porta da sua Casa-Atelier uma Flor (...Agreste!).

outros textos relacionados com a Casa-Atelier Soares dos Reis:
http://santa-marinha.blogspot.com/2007/09/casa-atelier-de-soares-dos-reis-ameaa.html
http://santa-marinha.blogspot.com/2007/10/casa-atelier-de-soares-dos-reis-e-o-160.html

1 Comments:

Blogger Fernis said...

Estimado Senhor,ao ler este seu blog acerca da casa/atelier do Mestre Soares dos Reis votada ao abandono e tambem sobre a "Flôr Agreste" fiquei curioso quando refere que enquanto "o misterio não se desvenda" se estará a referir em particular a essa escultura. Já agora indago se ser-lhe-á possivel elaborar mais sobre esta estória. Nomeadamente onde se encontra exposta esta escultura e aprofundar um pouco mais o seu percurso de vida da escultura Flôr Agreste.

3:10 PM  

Post a Comment

<< Home