Tuesday, September 18, 2007

A CASA-ATELIER DE SOARES DOS REIS AMEAÇA RUÍNA E AS OBRAS PROMETIDAS PARA JUNHO PASSADO NÃO PASSAM DE UMA MIRAGEM…

salvadorpereirasantos@hotmail.com

A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia é fértil em promessas não cumpridas. O seu número é tão extenso que seria fastidioso e quase ciclópico o trabalho de as enumerar neste espaço de reflexão e critica, onde partilho as duras realidades que me vão roendo a alma. Fico-me hoje pela Casa-Atelier de Soares dos Reis, que continua de pé quase por “milagre divino”... No início do ano, o vereador Mário Dorminsky prometeu que as obras de recuperação do imóvel onde viveu, trabalhou e morreu um dos nossos mais importantes Escultores de sempre, seriam executadas em Junho passado. Na altura, o autarca responsável pela pasta da cultura sublinhou que o investimento até nem era muito significativo. Porém, já vamos em Setembro e está tudo na mesma!

Quase todas as pessoas que passam pela rua Luís de Camões e se confrontam com aquele magnífico imóvel em estado de degradação, ficam chocadas com o seu abandono mas desconhecem a dimensão da sua história. Não existe sequer uma lápide, uma simples placa que lhes diga que foi ali que Mestre Soares dos Reis idealizou e produziu as suas últimas grandes obras, que ali viveu os últimos dias, que ali se suicidou, talvez cansado de tanta incompreensão, perseguição, calúnia e infortúnio. Dois tiros de revolver na cabeça puseram fim à sua existência. Deixou uma frase escrita numa das paredes: «Sou cristão. Porém, nestas condições, a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo a quem me fez mal».

Nasceu em Gaia a 14 de Outubro de 1847, faz agora, dentro de semanas, exactamente 160 anos. Deram-lhe o nome de António, como o santo de Lisboa (seu protector). O pai tinha uma “mercearia” e cedo António Soares dos Reis se fez marçano. Mas o rapaz vivia noutro mundo, no universo dos sonhos, onde se constroem as coisas do belo e do espírito. O papel de embrulho das vendas servia para fazer desenhos. Os clientes e os objectos que o rodeavam eram os seus modelos. Passado algum tempo, já não bastava o desenho. Com um canivete e pedaços de madeira fazia bonecos. Ainda não chegava! O miúdo pegou então em bocados de barro que sobravam da vizinha Fábrica da Torrinha e passou a moldar pequenas obras, que cozia ao sol, no quintal da sua casa.

Um cliente da loja do pai de Soares dos Reis reparou no talento do rapaz e falou dele a Francisco de Resende, um seu amigo, professor de Belas Artes. Não havia lugar para dúvidas, o miúdo do “merceeiro” era um artista em potência, um verdadeiro diamante a lapidar em local próprio: a Escola! Aos 14 anos, o futuro artista matriculava-se na Academia Portuense de Belas Artes e concluiria a sua formação cinco anos depois, obtendo o 1º prémio em Pintura, Arquitectura e Escultura, no trabalho de final de Curso, com a “estátua Viriato”. Nessa altura ainda assinava como António Soares. No ano seguinte candidatou-se a bolseiro da Escola Imperial e Especial de Belas Artes de Paris. Prova superada! A cidade luz passou a ser o seu berço de crescimento artístico.

Começavam a nascer as suas grandes obras: o “busto Firmino” e o “baixo relevo Mercúrio adormecendo Argos ao som duma flauta”, são esculturas construídas durante a sua estada em Paris. Segundo ele, a melhor forma de aprender é «saber ver». Por isso, não pára. Depois de terras de França, o seu destino foi Roma, onde encontrou Simões de Almeida e frequentou o ateliê de G. Monteverde. Foi aí que começou a produzir uma das suas mais emblemáticas obras: “Desterrado”. Estávamos em 1871 e Soares dos Reis afirmava-se já como um dos mais prometedores Escultores europeus. Viajou por toda a Itália, voltou a Paris e seguiu depois até Londres. Em 1872 regressou a Portugal, onde começou por executar o “Cristo Morto” para a Igreja de Mafamude.

O Porto era uma cidade laboriosa, produtiva. A burguesia portuense tinha dinheiro. Precisava também do lazer, como acontecia em Lisboa e nas grandes cidades europeias. Tinham acabado de ser criadas a Associação Industrial Portuense, a Associação Comercial, o Clube Portuense, a Assembleia Portuense. E as artes? Soares dos Reis achou que era preciso fazer qualquer coisa, agitar a cidade, levar ao conhecimento de todos o que se fazia no domínio das artes. O Porto tinha de ter algo que dignificasse a cultura, onde se discutissem ideias, se conjugassem interesses. Em 1880 foi criado o Centro Artístico Portuense, com o objectivo primeiro de divulgar o desenvolvimento das Belas Artes. Soares dos Reis estava na primeira linha do movimento.

Nesse mesmo ano Soares dos Reis foi admitido como professor na Academia de Belas Artes do Porto, vencendo as provas do concurso com a “academia Narciso” e o “baixo-relevo Morte de Adónis”. Entretanto, não parara de trabalhar. Em 1875 havia modelado a “figura Saudade”. Em 1876 modelara a “estátua do Conde Ferreira” destinada à campa daquele benemérito. Em 1878 recebera com orgulho a notícia da atribuição de uma menção honrosa na Exposição Universal de Paris, onde participara com “O Artista na Infância” e o “busto Domingos de Almeida Ribeiro”. Em 1887 conclui o “monumento a D. Afonso Henriques” e assiste à inauguração do seu “monumento a Brotero”. Em 1888 executa o célebre “busto de senhora inglesa”, que viria a ser recusado pela retratada.

Em 1881 o “Desterrado” participa na Exposição de Madrid. O sucesso é grande. Soares dos Reis conquista o 1º prémio do certame e é agraciado com o Grau de Cavaleiro da ordem de Carlos III. Foi o próprio Rei Afonso XII a condecorá-lo. Algum tempo depois virão as invejas, as maledicências, as calúnias, as intrigas, as ofensas. O Escultor sente-se como que deportado no seu próprio país e refugia-se no seu Atelier da rua Luís de Camões, em Gaia, onde trabalha e vive. As encomendas sucedem-se e o seu talento é cada vez mais reconhecido internacionalmente, mas o Escultor não se sentia feliz. Adoeceu. As traições iam-no matando aos poucos. Trabalhava no “busto de Fontes Pereira de Melo” quando se suicidou. Tinha apenas 42 anos.

É toda esta riqueza histórica, e muito mais (que propositadamente, por lapso ou ignorância, omito), que se “esconde” por entre as paredes da Casa-Atelier de Soares dos Reis, hoje entregue completamente ao abandono. No inicio deste ano, a Câmara Municipal prometeu recuperá-la até Junho passado, em articulação estreita com a Escola Superior de Belas Artes do Porto e com a Cooperativa Árvore, transformando-a num espaço de memória e estudo da escultura, inscrito num circuito de animação composto pelas Galerias Diogo de Macedo, pelo Arquivo Distrital e pela Casa da Cultura. Até hoje, nada!!! Faço votos sinceros para que no dia 14 de Outubro, quando se assinala o 160º aniversário do nascimento de Soares dos Reis, se cumpra a promessa!

0 Comments:

Post a Comment

<< Home